sábado, 14 de fevereiro de 2015

Entrevista com o Prof. Sergio Salles Filho


Este mês será lançado o livro Futuros do Bioetanol: O Brasil na Liderança?, produzido por pesquisadores do Núcleo de Apoio à Gestão da Inovação para a Sustentabilidade no Setor Sucroenergético (Nagise) e organizado pelo professor Sergio Salles Filho, do Instituto de Geociências da Unicamp e coordenador do núcleo. O estudo em nove capítulos analisa como a inovação tecnológica e não tecnológica ocorre no setor e como deverá alterar as características produtivas e mercadológicas do etanol nos âmbitos nacional e global.

Entre as atividades que deram subsídio ao livro está o esforço sistemático do grupo para a capacitação e o diagnóstico do tema de inovação e de gestão da inovação junto a 35 unidades produtivas representando 58 empresas e grupos do setor que, juntos, respondem por cerca de um terço da produção nacional de etanol.

Além do lançamento em São Paulo, dia 25 de fevereiro (Livraria Cultura, Conjunto Nacional, às 18h30), haverá lançamentos em Recife, Brasília e Limeira ao longo do mês de março, com data e local a definir (assim que eu souber, atualizo aqui).

No dia 12 de fevereiro, conversei com o Prof. Sergio Salles sobre a pesquisa e seus resultados, organizados no livro. Eis a entrevista.

1) Entre os diversos possíveis futuros para o etanol apontados no livro, quais o Sr. considera os mais desejáveis e quais os mais prováveis?

Não é possível falar de probabilidade para cenários. O grau de incerteza é tão alto que torna impossível qualquer previsão. O futuro deverá ser uma combinação dos cenários construídos, dificilmente um deles será a realidade no futuro. Hoje há duas questões interconectadas mais importantes sobre o futuro do bioetanol, ambas difíceis de solucionar: a transformação do etanol em uma commodity e a segunda geração.

A mais difícil delas é a ampliação do etanol na matriz energética no mundo, que significa transformar o etanol em uma commodity. Até 2010-2011 havia uma perspectiva muito otimista para o etanol no Brasil, de que cresceria seu peso na matriz energética e de que a liderança seria brasileira. Agora essa perspectiva se converteu em incerteza, daí o ponto de interrogação no título do livro. Atualmente, nada aponta explicitamente para o aumento substantivo da presença do etanol como biocombustível em âmbito internacional a ponto de ser comercializado globalmente, com preços definidos globalmente, tornando-se assim uma commodity, como o petróleo. Ao mesmo tempo, há indícios de que o etanol venha a ganhar espaço na matriz energética. O tema da sustentabilidade pressiona a favor do etanol. O mercado nacional, que sustenta o setor, tem um limite. O setor só vai dar um salto definitivo de qualidade, extensão e importância quando o etanol entrar na matriz energética internacional.

Com relação ao segundo ponto, da segunda geração, abre-se a possibilidade de se produzir etanol em praticamente qualquer parte do planeta, basta haver biomassa. Embora haja viabilidade técnica e algumas unidades produtivas em operação, sendo a maior delas da Granbio iniciada em setembro do ano passado, há ainda incertezas e problemas. Então a viabilidade técnica e tecnológica ainda não está totalmente dada. Do meu ponto de vista é uma questão de tempo e de volume de recursos investidos nesse desenvolvimento. O problema principal não é técnico, é um problema de mercado, de organização da matriz energética, de decisão de investimento. O etanol de segunda geração só vai deslanchar se o etanol tiver espaço no mercado. O etanol pode ser uma solução, mas o contexto de incerteza leva à necessidade de se observarem os vários cenários possíveis. O espaço econômico de combustíveis para veículos com motores a combustão interna vai continuar existindo e representa oportunidades para o etanol.

2) Grandes produtores de etanol no mundo, os Estados Unidos e o Brasil tiveram trajetórias muito distintas nos últimos anos. O que explica essa diferença?

O lobby agrícola, especialmente do milho, nos Estados Unidos é muito forte. Os Estados Unidos têm uma máquina de capitalismo baseada em investimento capaz de atender a pressões como o aumento da mistura de etanol à gasolina. Nos Estados Unidos, em cinco, seis anos, a produção anual de etanol passou de 25 a 50 bilhões de litros, e assim o etanol entrou na matriz energética daquele país com alguma facilidade. No Brasil a produção de etanol passou de 16 para 24 bilhões de litros no mesmo período. Por quê? Primeiro porque bate no teto do que é o mercado brasileiro, dentro das condições dos preços. Essas condições colocadas nos últimos três anos refletem uma contenção dos preços do petróleo que atingiu os preços do etanol e fez com que a oferta batesse em um teto. É possível elevar o teto do mercado interno, mas não é isso que vai transformar o setor definitivamente. Se o Brasil tivesse que produzir etanol a partir do milho, buscaríamos a desculpa de que transformar o milho em etanol é muito mais difícil, porque é preciso quebrar o amido antes da fermentação, o que não ocorre com o etanol de cana-de-açúcar. Mas nunca ouvi uma reclamação dos produtores de etanol de milho nesse sentido.

A produção de etanol nos Estados Unidos dá conta de sua demanda, ainda que importe uma pequena parcela de etanol do Brasil. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, grande parte do etanol produzido é consumida internamente. A Europa está tendendo muito mais para o biodiesel, porque a produção agrícola europeia se concentra em oleaginosas e não em vegetais ricos em sacarose ou amido. As associações de produtores de oleaginosas na Europa pressionam pelo biodiesel e não pelo etanol. Restam então China, Índia e outros grandes consumidores de biocombustíveis, cujas decisões dependem de uma série de variáveis, sendo o eixo o preço do petróleo. Com a queda dos preços do petróleo no ano passado, mudou tudo. Entregamos a versão final do livro em agosto de 2014. Dali até recebermos a prova editorada, o contexto havia mudado muito em função da queda dos preços internacionais do petróleo, que caíram de patamares acima dos US$ 100/barril para metade disso. Então tivemos de refazer parte das conclusões do livro. Com isso, os países reveem suas políticas. O etanol continua sendo importante por causa dos marcos regulatórios e, principalmente, por causa da sustentabilidade.

3) As inovações potencias do setor sucroenergético em gestação atualmente têm um compromisso com a sustentabilidade?

Sim e não. Sim, porque talvez hoje seja a principal plataforma na qual se sustenta o crescimento dos biocombustíveis. Não, porque a força desse tema precisa enfrentar a força dos preços da matriz energética global baseada no petróleo. Então a sustentabilidade não é uma força que se reproduz economicamente. As ações se devem à existência de um marco regulatório, que não é capaz de alterar as forças que influenciam as decisões de investimento. Também é preciso considerar os movimentos da indústria automobilística, o carro elétrico, outras fontes alternativas além do etanol. As trajetórias tecnológicas estão competindo. Existe uma mudança de trajetória tecnológica, mas ainda na fase inicial de competição. Algumas soluções serão eleitas e continuarão no mercado, enquanto outras serão eliminadas. Não é possível prever quais serão as eleitas. Esse é um sistema complexo em que as variáveis não são preditíveis. Por outro lado, ao observarmos o que as empresas fazem atualmente em termos de inovação, a sustentabilidade é o tema no qual há maior volume de investimentos. Mais até do que o tema da produtividade. Foi isto o que vimos no trabalho do Nagise.

4) Diante do avanço dos Estados Unidos na área de energia, especialmente o etanol de milho e o gás de xisto, em que medida o argumento da sustentabilidade pode influenciar as ações do setor sucroenergético no Brasil?

O etanol de milho e o gás de xisto nos Estados Unidos são exemplos de como as condições podem mudar rapidamente. Seis anos atrás o xisto representava 2% do consumo de gás natural nos Estados Unidos, hoje seu consumo chega a 25%. Mudar uma matriz dessa maneira, com essa rapidez, deixa o mundo atônito. Nenhum outro país tem essa capacidade de resposta. Com relação ao etanol, a produção anual duplicou nesse período. E isso a despeito das críticas quanto à sustentabilidade, no sentido ambiental, porque na comparação com gasolina e diesel, tanto o etanol de milho como o gás de xisto são considerados males menores.

5) Do seu ponto de vista, a cadeia de produção do etanol combustível brasileiro pode ser considerada sustentável? Suas bases apoiadas em grandes propriedades de terras e grandes empresas multinacionais seriam incompatíveis com a sustentabilidade?

A questão da sustentabilidade é sempre relativa. Como disse, em comparação com combustíveis fósseis líquidos o etanol, sendo renovável, é sustentável. Isto não significa que impactos negativos não estejam presentes, eles estão, basta olhar o horizonte quando se viaja pelo estado de São Paulo, até onde a vista alcança, é cana que não acaba mais. Entretanto, quando fizemos o diagnóstico sobre a situação da inovação nas empresas do setor, verificamos que as inovações tecnológicas e não tecnológicas mais frequentes na última década têm objetivo ambiental. Isso chamou muito nossa atenção, o ambiental foi mais frequente que a produtividade, por exemplo, e muito disso se deve aos progressos dos marcos regulatórios no Brasil e no mundo. As empresas estão investindo para atender às certificações, senão não há a menor chance de expandir os mercados internacionais. Isto é bom, do ponto de vista da sustentabilidade. Entretanto, não quer dizer que não haja problemas dessa natureza. O livro tem dois capítulos relacionados à sustentabilidade, com foco no aspecto ambiental. Há muitas variáveis a considerar e o tema é controverso.

6) O que poderia justificar a postura contraditória das políticas públicas brasileiras para o setor sucroenergético?

Essa pergunta seria para a nossa presidente responder. Porque é muito difícil entender o que aconteceu nos últimos quatro anos na política energética do Brasil, e não apenas de combustíveis, mas também energia elétrica. A estrutura de produção de energia no Brasil se desorganizou de tal maneira com a promessa do bilhete premiado do pré-sal que acabou se transformando em um problema. As políticas pró-etanol minguaram. O PAISS, do BNDES, é um programa muito bom, mas insuficiente para sinalizar qualquer mudança na nossa matriz. Falta escala. Então há muitas contradições. A presidente Dilma optou por controlar a inflação com o preço da gasolina na bomba apostando no pré-sal e em prejuízo do setor de etanol. Afinal, o petróleo rende royalties, o etanol não. E o volume financeiro movimentado pelo setor de petróleo é muito maior do que o do setor sucroenergético.

7) Algumas empresas do setor sucroenergético têm buscado ações para aumentar sua produtividade, mas não ainda a maioria delas. Qual é o perfil das empresas que conseguem se preparar para as exigências do mercado?
Intuitivamente, poderíamos afirmar que são os grandes capitais nacionais e internacionais que conseguem investir em produtividade e ganhar melhores posições no mercado. Mas isso é verdade em parte. Embora a maioria desses grandes capitais apresente de fato mais iniciativas de investimentos em tecnologia e profissionalização da gestão da inovação, há empresas com esse perfil que não assumem essa iniciativa. Por outro lado, nem sempre os tradicionais usineiros do setor têm uma postura conservadora, havendo casos em que eles realizam investimentos e diversificação da produção com resultados positivos em produtividade. O que é espantoso ainda é termos uma produtividade média em patamares muito baixos. No início dos anos 1980, a média era de 58-60 toneladas de cana colhida por hectare. Hoje, mais de trinta anos depois, a produtividade média é de 68-70 toneladas de cana por hectare. Existem produtores que registram produtividade de 90, 100 toneladas por hectare, mas não é o padrão do setor. Há produtores com produtividade de 50 toneladas por hectare. Existe um conjunto de tecnologias na prateleira, mas a maioria dos produtores não investe. Os pequenos produtores têm menos condições de investir e trabalham com margens muito menores. Muitos fecharam, algo como 70 usinas a menos nos últimos três anos. Para os grandes capitais, a retração do mercado e a falta de perspectivas de crescimento desestimulam os investimentos no setor. Os grandes capitais apostam em diversos caminhos e o etanol é um deles.